Muitos me perguntam o porquê escolhi ser oncologista. Obviamente, penso que esta pergunta está associada ao fato de que nós, oncologistas, enfrentamos, no dia-a-dia, situações que trazem consigo uma boa quantia de sofrimento. Felizmente, esta é uma realidade cada vez mais distante em decorrência dos avanços da medicina e do conhecimento sobre a biologia escondida por trás de um câncer extremamente agressivo. Porém, não posso negar: há dias difíceis.

Talvez faltassem páginas para que pudéssemos mergulhar no cerne desta questão. Sem entrar nas profundezas das razões que determinaram esta escolha respondo que, nesta especialidade, por compartilharmos situações e vivências muito difíceis, existe uma relação médico-paciente muito forte e extremamente necessária para o sucesso de um tratamento. Esta aproximação acontece como consequência do compartilhamento empático dos mais profundos sentimentos que emergem de tais diagnósticos. Essa relação me fascina! A habilidade de estabelecer esta aproximação é, para mim, em dias em que o conhecimento científico está facilmente disponível em um toque na tela do telefone celular, uma das características que diferencia os bons oncologistas. Me arrisco a dizer que é uma interação, tão intensa, quanto aquela que surge em um tratamento psicanalítico de sucesso. Juntamente com as dores do corpo, recebemos as dores psíquicas de um ser humano.

Historicamente, a palavra câncer tem uma forte associação com morte, dor ou sofrimento. Apesar de todos os avanços científicos na oncologia, isto ainda não se modificou. Alguém que recebe o diagnóstico de uma doença potencialmente fatal, mesmo em estágios iniciais, que será curada com um simples procedimento cirúrgico, tem seus momentos de profunda reflexão. “Perdem o chão”. Nestes momentos, surgem diferentes significados para as coisas que estão ao redor: tanto para as relações afetivas, quanto para as questões materiais. É ainda mais doloroso quando enfrentamos diagnósticos de doenças incuráveis quando teremos que lutar, dia após dia, para prolongar a vida, minimizando sofrimento físico e psíquico.

Apesar de ser um grande admirador da psicologia e da psicanálise, não me arriscaria, aqui neste espaço, a citar Freud ou outros pensadores para guiar minhas reflexões. Entretanto, trago versos de Herivelto Martins, gravados por inúmeros ícones da nossa música popular brasileira, que me ajudam a refletir sobre segredos a cada vez que os ouço tocar.

“Seu mal é comentar o passado
Ninguém precisa saber
O que houve entre nós dois
O peixe é pro fundo das redes
Segredo é pra quatro paredes
Não deixe que males pequeninos
Venham transtornar os nossos destinos
O peixe é pro fundo das redes
Segredo é pra quatro paredes
Primeiro é preciso julgar
Pra depois condenar”.

            A experiência me ensina que não há segredo que sobreviva ao sublime enfrentamento da morte e da finitude. Nós, oncologistas, somos fiéis depositários de segredos. Alguns deles talvez sejam revelados sem que o próprio paciente perceba que está dividindo tamanha intimidade. Os sofrimentos gerados por uma doença incurável, onde o corpo ainda não acusa os sintomas derradeiros relacionados a evolução da doença, traz à tona os mais profundos sentimentos. E estes precisam ser compartilhados com alguém. Segredos podem ser uma outra doença a qual o mesmo não gostaria de compartilhar com amigos e familiares com medo do preconceito que esta poderia trazer; uma questão afetiva proibida que mudaria destinos de forma radical; preocupações com os sofrimentos gerados em quem se ama; ou, até mesmo, resoluções financeiras que até então não se faziam importantes. Ao sermos escolhidos para confidenciar aquilo que não poderia ser compartilhado, saímos, mesmo que momentaneamente, do papel de oncologista para escutar e tentar aliviar um outro tipo de sofrimento. Este último, não menos importante do que aquele que trouxe o paciente até nós. É preciso perceber o quão importante é a manutenção do sigilo desta informação. Não somente para seguirmos preceitos éticos fundamentais, mas para que possamos ser um apoio confiável no processo de superação desta dor. Um segredo de alguém de 70 anos de idade pode, muitas vezes, não ser bem compreendido por um jovem oncologista de 37 anos, como no meu caso, em razão das experiências de vida distintas. Entretanto, o compartilhamento, imparcial e empático, da dor é que torna a relação médico-paciente única e cria as condições necessárias de aproximação e parceria no enfrentamento de tamanha dificuldade.

Simultaneamente, vivemos situações semelhantes, mas sob outra perspectiva: a de familiares ou pessoas muito próximas ao paciente que passam a lidar com o sentimento de perda do ente querido. Neste momento, cada um expressa suas inquietudes de diferentes formas. E conseguir trabalhar tais segredos, de forma respeitosa e individual, pode tornar um processo extremamente pesado em outro um pouco mais leve. Valorizar os sentimentos de quem vive junto as dores da doença tem papel fundamental no enfrentamento do processo orgânico. À medida que estes sentimentos emergem e adquirem significado, muitas das preocupações em torno de um segredo naturalmente deixam de existir.

Esconder as incertezas relacionadas ao prognóstico de uma doença oncológica, por exemplo, é tema recorrente por parte daqueles que tentam proteger quem se ama de um grande sofrimento. Que bom seria se pudéssemos minimizar sofrimentos simplesmente mantendo algumas informações em segredo… Não é incomum que, frente a um desejo incontrolável de familiares querendo manter a certeza de um desfecho ruim guardada à sete chaves, ouçamos do paciente que o mesmo não quer saber sobre o seu prognóstico, e que seguirá enfrentando a doença com o mesmo vigor. Ou que, paradoxalmente, o mesmo sabe tudo o que vai acontecer e que seguirá enfrentamento de cabeça erguida. O oncologista, frente a um segredo que é passível de ser revelado, serve como um elo de ligação entre as diferentes percepções e, na ausência da dor antecipada, auxilia na desconstrução de determinados sofrimentos. Por outro lado, existem segredos que não podem ser compartilhados. Pertencem única e exclusivamente àquela pessoa. Esses nos ajudam a navegar pelos rios tortuosos do combate ao câncer, mas ficam guardados, registrados, e ali ficarão.

Nos poucos anos de tão recompensadora profissão, nunca vi reações iguais perante a possibilidade concreta da morte. Sinto que muitos dos segredos compartilhados precisavam, de fato, ser compartilhados e isto ajuda no processo de cura ou até mesmo de morte. Frente a possibilidade concreta de ausência definitiva, culpas podem ceder espaço ao perdão e, tantos outros sofrimentos são evitados. Como cantou Herivelto Martins: “Não deixe que males pequeninos venham transtornar os nossos destinos”. Este é o nosso papel. Continuarei guardando, entre quatro paredes, vivências muito ricas que, sem dúvida, transtornam e transformam destinos. O meu próprio destino. Por essas e outras razões escolhi ser oncologista.

* Texto publicado na revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA, V.23 n1/2020. Tema Segredos)